Segundo Marilena Chauí, em sua obra “Mito fundador e sociedade autoritária”, todo e qualquer grupo social necessita de um conjunto de normas para manter sua coesão, seja ideológica, seja física, ou ainda para a manutenção da integridade dos costumes do grupo social. Tendo em vista este objetivo das normas sociais, a autora trabalha a idéia dos semióforos.
Semióforo é um objeto, uma pessoa, uma instituição ou até mesmo um animal, dotado de um conjunto de significados que influenciam ou condicionam um determinado comportamento, uma crença, um costume, e que pode ser criado intencionalmente ou surgir de forma espontânea nas relações dos diversos tipos de convívio social. É uma insígnia, dotado de uma simbologia própria e caracterizado pela coação sutilmente exercida no indivíduo, persuadindo-o a segui-la. A autora assim o exemplifica:
É um objeto de celebração por meio de cultos religiosos, peregrinações a lugares santos, representações teatrais de feitos heróicos, comícios e passeatas em datas públicas festivas, monumentos; e seu lugar deve ser público: lugares santos (montanhas, rios, lagos, cidades), templos, museus, bibliotecas, teatros, cinemas, campos esportivos, praças e jardins, enfim, locais onde toda a sociedade possa comunicar-se celebrando algo comum a todos e que conserva e assegura o sentimento de comunhão e de unidade. (Chauí, 2001)
A principal característica do semióforo é a capacidade de manter a unidade, a união e a coesão de um determinado grupo social, através da padronização ideológica, e é por isso que ele tem se mostrado como um forte instrumento de poder e de dominação. As chefias religiosas, os políticos, os líderes de corporações são casos de possuidores iniciais dos semióforos que podem utilizá-los ou até mesmo criá-los no intuito de guiar o restante do grupo.
No modelo de produção capitalista, os semióforos parecem, inicialmente, ter desaparecido da sociedade, tendo em vista que tudo se transforma em mercadoria neste modelo econômico. Contudo, na verdade, os semióforos tornaram-se propriedade dos donos dos meios de produção e do poder, permitindo produzir e conservar um sistema de crenças e de instituições que perpetuam a ordem estabelecida. Para realizar esta tarefa, o poder político precisa construir um semióforo fundamental, aquele que será o guardião e o lugar dos semióforos públicos, e este semióforo-matriz é a nação.
A nação surgiu como uma necessidade de pacificação dos anseios populares da sociedade moderna, que se tornava cada vez mais complexa. A idéia de nação surgiu gradativamente, e ela representa uma modificação do estado anteriormente estabelecido, ou seja, ela não é uma vitória social, mas uma imposição do Estado que deve ser acatada e respeitada. E para respaldar e disfarçar o caráter outorgante da idéia de nação, os possuidores do poder criaram um conjunto de semióforos capazes de disfarçar a real intenção da classe dominante.
Como trabalhado acima, os semióforos estão presentes nos mais diversos tipos de organização social, principalmente nas instituições públicas defensoras dos interesses do Estado e, em especial, nas instituições policiais e militares. Neste sentido, analisaremos em específico a Polícia Militar.
As organizações militares, tanto as forças armadas como as forças auxiliares dos Estados (Polícia Militar), fundamentam-se na hierarquia e na disciplina, e para a manutenção destes institutos o ordenamento lança mão de uma legislação diferenciada, dotada de normas especiais, que legitimam um ambiente de trabalho diferente do universo civil.
A conduta militar é caracterizada pela postura marcial, ação vigorosa, demonstração de força, etc. Estas características são bastante nítidas no militar no exercício de suas funções, tanto entre os superiores e subordinados como no exercício da sua atividade fim: no caso da Policia Militar, o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública. Valores como a bravura, a lealdade, o cumprimento eficaz das ordens e a motivação para o serviço fazem parte da cultura castrense, e garantir que sejam mantidos é um dos deveres dos cursos de formação aos quais os recrutas se submetem.
Em razão de suas peculiaridades, o modelo militar de agir exige uma série de condutas a quem exerce suas funções, e existe uma linha muito tênue entre o que é legal e o que é constrangedor, entre a ação vigorosa e marcial e a arbitrariedade e entre o autoritarismo e a violência.
O modelo de ensino nos diversos cursos de formação de militar é muito semelhante em todo o país. Neste modelo, há uma forte presença de atividades condicionantes, que visam adaptar o ingressando aos padrões militares, abandonando os “vícios da vida civil”.
O que se busca nos cursos de formação militar é a completa transformação do indivíduo. Trata-se daquilo que Michel Foucault chama de manipulação dos corpos dóceis: “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (1987).
Formar o indivíduo é um objetivo histórico na cultura da instrução militar. Como mostra o renomado filósofo francês:
Segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a maquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silencio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi “expulso o camponês” e lhe foi dada a “fisionomia de soldado. (Foucault, 1987)
O período de formação na academia busca preparar o policial a exercer as funções e atribuições constitucionais: atividades operacionais, de administração e planejamento das atividades da instituição. É neste cenário castrense caracterizado pela marcialidade, pelo vigor e pelo autoritarismo, onde prevalece o “mando quem pode, obedece quem tem juízo”, através da rigidez hierárquica que o PM se forma, e as características obtidas neste período acompanharão o profissional por toda sua trajetória na organização.
Alguns estudiosos da doutrina policial questionam o fato de a PM estar submetida ao mesmo regulamento que o exército e à mesma metodologia de treinamento e ensino. Tendo em vista a diferença de atribuições entre ambos, esta discussão faz bastante sentido, pois a polícia não é uma tropa de guerra, ou seja, o militar do exército é preparado única e exclusivamente para matar o oponente, enquanto que o policial só pode fazê-lo como último recurso para aplicar a lei. Neste sentido, como é possível conceber que as forças militares dos estados tenham valores distintos das forças armadas? Certamente quase impossível.
Sob a ótica do movimento behaviorista, o tratamento que o militar recebe na academia é caracterizado pela relação estímulo – resposta, e principalmente o reforço negativo através das penalidades e dos sermões. Esta relação, praticada reiteradamente durante o curso, provoca efeitos definitivos e condicionam o comportamento do indivíduo. Sendo assim, pode-se inferir que a probabilidade de um policial agir de acordo o que se submeteu no curso de formação é altíssima, o que torna muito provável a possibilidade de tornar-se um policial violento.
Além do período de formação, o policial enfrenta durante toda sua trajetória profissional, um ambiente de trabalho com todas as características típicas do militarismo citados anteriormente (marcialidade, ação vigorosa, hierarquia, etc.), e dotado de um conjunto de símbolos que estimulam o uso e a demonstração da força. Prova disso basta observar os famosos “corridões” militares e suas canções, onde se exaltam o uso exacerbado da violência. Esta “coloca-se estrategicamente na institucionalidade cultural da polícia militar, como dispositivo constituinte de homens e mulheres em policiais militares” (Calazans, 2004)
Nos quartéis da polícia militar, se percebe que os profissionais mais reverenciados são exatamente os que utilizam a força com maior freqüência, estes são exaltados e elogiados pelos colegas e pelo comando. Um fato curioso acontece em algumas unidades especializadas da PM: há uma competição entre as guarnições que mais produzem, onde a produção é medida por pontos e cada tipo de ocorrência tem uma pontuação diferente variando conforme o grau de perigo e de força utilizada, por exemplo, um Auto de Resistência com força letal vale mais pontos que um TCO (Termo Circunstanciado de Ocorrência), já que neste não há óbito, e naquele sim.
Diante das análises feitas até aqui, ousamos inferir que a violência é uma espécie de semióforo enraizado na Polícia Militar, instituídos através do conjunto de valores difundidos pela instituição transmitidos aos seus integrantes desde o primeiro momento de ingresso nas fileiras da corporação e alimentados no ambiente de trabalho durante toda sua carreira.
Carlos Lacerda
Cosme Severo
Dailton Reis
Danilo
José Nilton Neves
Luis Luan
Ronaldo Rodrigues Santos